segunda-feira, 9 de setembro de 2013

O MANIFESTANTE FOTÓGRAFO

O manifestante fotógrafo não necessariamente é um manifestante. É capaz de ele não estar nem aí para o que está acontecendo e ache tudo uma falta do que fazer. Mas acontece que ele viu várias fotos muito legais de pessoas correndo, de manifestantes armados de pedras apenas enfrentando a repressão policial, de pelotões de tropa de choque formando linhas retas prontos para serem emoldurados numa foto em homenagem ao construtivismo russo. E o fotógrafo em questão — que sente falta de grandes guerras no país e que possui medo de ir à favela — vê aí sua grande chance de tirar aquela foto que vai marcar um momento histórico.  E assim ele vai, com suas três máquinas: uma analógica que ele não sabe usar, uma digital profissional e uma vagabunda para o caso das outras duas derem problema (a analógica, segundo ele, sempre dá problema, mas é porque ele não sabe usar).

O manifestante fotógrafo é aplicado. Sobe em lixeiras, postes, marquises, tudo em busca do melhor ângulo. Ele não pode ver gente correndo, que vai logo atrás, e se frusta ao ver que é um alarme falso — alguém havia se assustado com uma barata e os outros correram pensando que era a polícia, tornado-se um efeito em cadeia.

Mudando de estratégia, passa a caminhar ao lado de um PM esperando fragá-lo agredindo manifestantes ou tentando proibi-lo de exercer seu dever de mostrar ao mundo a realidade dos fatos. Infelizmente acaba seguindo um dos poucos PMs boa praça do batalhão, que volta e meia dava sorrisinho para as fotos e informava manifestantes sobre como proceder em casos de emergência. A gota d’água foi quando o policial pediu se o manifestante fotógrafo podia lhe enviar as fotos por e-mail: Quero mostrar para minha filha, ele diz.

Quase no final de suas esperanças, eis que ocorre uma explosão. Fumaça se levanta. O fotógrafo começa a correr em direção do som de gritos e de armas disparadas. Sua arma, a máquina fotográfica, em punho. Chegando lá, encontra o que tanto esperava: pessoas correndo (clique), vandalismo (clique), polícias atirando em pessoas desprotegidas (clique), carros incendiados (clique), um policial no chão sendo agredido (clique). Apenas quando os efeitos do gás lacrimogênio se tornam intoleráveis demais, mesmo com vinagre, é que ele vai embora; certo de ter o trabalho feito.

Em casa, o fotógrafo não perde tempo de passar para o computador o seu trabalho, são quase 3000 fotos, e o computador por pouco emperra no processo. O resultado surpreende o fotógrafo, e não do jeito que esperava. São quase 3000 fotos embaçadas e desfocadas de gente correndo e de fumaça, e isso se você fizer um esforço para abstrair. O fotógrafo tampa o rosto em desespero. O trabalho não foi todo perdido, porém. Sobraram as fotos do policial dando tchauzinho para a câmera.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Nunca olhe dentro da cartola de um mágico

O mágico tirou da cartola um coelho. As pessoas bateram palmas. O mágico tirou da cartola pombos. As pessoas bateram palmas. Tirou da cartola, ainda, lenços; vários deles, todos entrelaçados e coloridos, vermelho, azul, laranja, violeta, verde-piscina, roxo... até que se formou um amontoado cromático a seus pés. As pessoas bateram palmas enfaticamente. E então uma batida ressoou acelerando. O mágico gingou sua mão por cima da cartola como se tateasse uma matéria invisível. E enfim, na última batida, enfiou a mão na cartola e retirou Hitler. As pessoas ficaram em silêncio sem saber se batiam palmas ao ver o Reich em carne e osso, com seu bigodinho, sua farda, seu cabelo repartido, resmungando em alemão enquanto era mantido suspenso pela mão do mágico em seu colarinho. Mas finalmente ele guardou Hitler na cartola, virando-a para mostrar que não havia mais sinal do ditador. E as pessoas bateram palmas, aliviadas, rindo. Achavam que tinham chegado ao clímax do show. Não podiam estar mais erradas. O mágico pediu silêncio. Aproximou o ouvido da cartola. Depois se aprumou e ajeitou suas luvas. Entre a aba, vinda do interior da copa, emanava uma luz branca. Ela iluminou o rosto do mágico quando ele enfiou a mão na cartola. A batida ressoou mais uma vez. Bocas se abriram em expectativa. Houve um Ó em coro no instante que um tranco misterioso puxou o próprio mágico. Mas ele resistiu e, num esforço final, o mágico carregou alguém de dentro da luz, ninguém mais ninguém menos  que o ressuscitado, o filho, o espírito, o santo, amém — Jesus Cristo. As pessoas bateram palmas e louvaram. Até Jesus Cristo se impressionou e acompanhou a euforia. Sua animação se desfez quando o mágico anunciou o próximo truque: faria o milagre da multiplicação de Jesus, cortaria o Senhor ao meio.
O mágico arrazoou: Você sabe, né Jesus? Tudo para conquistar o público.

Avulsos I

Pousou um passarinho na varanda do meu apartamento. Ele olhava para a sala branca, onde eu estava sentado. Eu olhei para ele, marrom raido de preto, sempre balaçando a cabeça enquanto analisava o que via. Percebendo que ali não havia terra, nem minhoca, nem fruta pra comer, empinou o bico, deu as costas e voou embora, para onde tivesse árvore. Fosse uma mansão, provável que fizesse o mesmo gesto. Há algo de triste em saber que passarinhos não entram em nossas casas se não for por acidente. Na minha sala, eu fiquei mais ciente do vazio que ocupava.
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Ser uma pessoa bonita é o principal exemplo de complementação entre teoria e prática. Primeiro você observa o que é uma pessoa bonita, há uma série de revistas e vídeos que dizem o que é, o que come, o que diz e ainda  mostram esquemas elaborados do design de uma pessoa bonita. Entendido a teoria e o funcionamento da pessoa bonita, é hora de colocá-los em prática repetindo tudo o que aprendeu, até soar natural, e realizar as devidas mudanças no corpo adicionando e retirando aparelhagens da anatomia. Assim, em pouco tempo se é uma pessoa bonita.
Agora, ser um indivíduo é que não dá para entender. Só sendo mesmo.   
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 Mesmo cagando no banheiro não estou sozinho. Não que tenha alguém com fetiche de me ver cagando. Falo da conversa que a gente tem consigo mesmo. A voz a falar na minha cabeça. Uma voz similar a minha, tecendo planos, fazendo críticas, discursando. O que as pessoas falavam para si quando não havia linguagem?


segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Sobre a física familiar

Parece que sobrinhos tímidos elevam o teor de canastrice dos tios. São duas forças que se atraem, querendo ou não. A Física ainda vai descobrir as partículas envolvidas no negócio. O caso do meu tio seria de grande interesse para os físicos. Ele foi cumprimentar meu primo Emanuel, de 10 anos, que estava praticando a arte de se camuflar como móvel de sala. Claro, dizer um "Oi", ou um "Fala aí", ou até mesmo um clássico "Como você cresceu? A última vez que te vi ainda engatinhava", era fácil demais para meu tio, nada digno de sua habilidade como entertainer. Ele precisava fazer alguma piada. Daí que ele me vem com um sotaque português e diz:
- Ora pois, Emanuel, como vai a padaria?
Deu para ouvir a alma do menino rastejar para algum canto do intestino. Partículas de timidez se colidindo com partículas de canastrice, amplificadas por campos de vergonha alheia, com força suficiente para gerar energia para toda uma cidade. Esse é o futuro.