sábado, 26 de abril de 2008

Convenções sociais

Picuinhas seguia sorridente no seu caminho que levava para fora do campus universitário. Fora um dia feliz e ele tinha a necessidade de demonstrar isso com passos joviais, às vezes saltitando para coisa toda ficar mais óbvia. Oras, o céu estava azul claro, as flores se abriam em cor e perfume, os pássaros cantavam e... quem diabos é aquela pessoa no sentindo contrário? Uma dor lacerante correu pelo peito, seus pés congelaram diante dos motores que acionavam a sua memória e o mundo passou por um cinza dominado pelo...(voz cavernosa) medo. Sua cabeça foi a mil, como você pode bem observar a seguir: “Lindolvo! AQUI?! Não é possível, ele é burro demais para entrar para uma faculdade. Deus, ele não consegue se arrumar sem a ajuda da mãe! Tenho que despistar esse pulha!”
Olhou para um lado, olhou para outro; sempre evitando qualquer contato visual.
“Talvez se eu mudar de calçada... Mas aí ele ainda pode me ver... Se tivesse chovendo, eu me escondia com um guarda chuva... e se – uma gota de suor correu por entre os olhos esbugalhados – ele já me viu?”

Lindolvo, que de lindo só no nome mesmo, passara pelo portal da faculdade. Muita gente disse que ele nunca conseguiria entrar para nenhuma universidade, mas lá estava; de nariz em pé, mostrando que todos estavam enganados. Tá certo, que não entrou para ser estudante e, sim, faxineiro, porém já era meio caminho andado. Foi nesses entrementes que ele avistou um antigo colega parado há alguns metros à frente. E, apesar do que Picuinhas imaginava, a última coisa que Lindolvo queria era conversar com ele. “Putz, era tudo o que eu queria ver esse idiota! Cumprimento ou não cumprimento? Eu mal falava com ele, tinha um péssimo senso de humor. Nunca ria das minhas piadas! Sem falar que ele não entenderia o romantismo da profissão da limpeza, mesquinho filho da puta! Ah essas merdas de contravenç.. convenções sociais! Não vou cumprimentar o cara e pronto. Vão me prender, é?” Nesse momento, Lindolvo encarou o segurança que comia seu sanduíche em paz e que, por sua vez, ficou constrangido. O segurança, não o sanduíche, apesar que certos sanduíches com maioneses fora da validade e ovos estragados terem vida o bastante para possuírem personalidade.
-Eu to no meu horário de almoço, tá legal?!- disse o segurança, em vista que os olhos não saíam dele.

A cada passo os dois chegavam mais perto um do outro e o desespero aumentava. Picuinhas jurava que podia sentir o som do choque do pé contra o chão como um tambor, abafando qualquer outro barulho ao redor, principalmente o cantar dos pássaros. Passou a mão na testa. “Que eu faço? Só estou a alguns segundos de uma piada velha e sem graça envolvendo algum garoto excepcional, português ou não, chamado Joãozinho. Já sei” Pegou um caderno de sua mochila e abriu bem na sua cara, fingindo muito interesse na leitura.

“Ótimo, pensou Lindolvo ao ver que Picuinhas começara a ler, assim tenho uma boa desculpa para não cumprimentá-lo.”

“Essa droga de caderno não vai funcionar!” Picuinhas fechou o caderno, enquanto a sensação de inevitabilidade o atingia. Não podia fugir de seu destino. A morte era a única saída e esquecera sua pílula de cianureto em casa. “Do jeito que esse cara é chato vai fazer uma algazarra pra chamar a minha atenção. Nada pode impedi-lo de ser um mala sem alça”

“Merda! Parou de ler!” Irritou-se o outro. “Se ao menos eu não fosse analfabeto, eu poderia ler alguma coisa!”

Pat pat pat pat. Continuava a marcha e a Guerra fria, sem que os outros passantes se dessem conta da situação delicada que os dois se encontravam. As vezes os dois paravam para admirar o não sei o que, talvez uma formiga o que passava ou as vezes para puxar uma conversa com alguém que estava só de passagem e que não se importavam nem um pouco de ignorá-los. Se havia alguma coisa para fazer, tinha que ser agora. E eis que surge uma epifania na mente de Picuinhas. Fora iluminado com a salvação, tudo que precisava fazer era entrar no prédio logo a seu lado. Virou 94º a esquerda – não poderia ser 90º, pois duvidariam da naturalidade do ato – e seguiu para o prédio hospitaleiro.

Teria entrado se não tivesse esbarrado com alguém. “Tudo bem, calma. É só ir pedir com licença e passar do lado”
-Com licença.
“Pronto. Agora ela foi pro mesmo lado que eu, mas daí é só ir pro outro que a gente acaba com essa situação e cada um sai ou entra... Aha! Ela foi para o mesmo lugar que eu de novo. Isso está se tornando constrangedor, vou fingir que eu vou para um lado e vou por outro. 1 2 3. Lá vai”
-AII! Qual é o seu problema? – disse a garota após o empurrão.
-Olha, moça! Você precisa sair da minha frente, é questão de vida ou morte.
-É você que precisa sair da minha frente.
-Você preci.
Picuinhas olhou para o lado, quando Lindolvo passava assoviando (o que ele não sabia fazer, então na verdade só estava soprando e fazendo algum ocasional barulho). Por um ato reflexo ou pelo maldita curiosidade que nós humanos temos em relação aos nossos infortúnios, Lindolvo virou o rosto, nanosegundos o bastante para seus olhos cruzarem com os deles como dois aviões kamikazes, como asteróides em suas rotas de colisão com planetas. Não só cruzaram olhares, mas como pensamentos. “Merda”
-Lindolvo, como você vai, rapaz?
-E aí, Picuinhas, meu velho, há quanto tempo?
-Saudades de sua piadas.
-Ah, eu tenho ótimas. Tem tempo, te conto algumas.