domingo, 24 de abril de 2011

Páscoa: poder, ovos e trapaças

Juntar ovos de Páscoa e pacotinhos de São Cosme e Damião é o mais perto de acumulação de capital que uma criança pode chegar. Eu mesmo, na época das estantes de proporções everestiana e das calças ocasionalmente molhadas de xixi, me interessava mais em guardar doces do que comê-los. Na barriga, não podiam causar inveja nos primos e amigos. Era necessário ostentá-los em suas embalagens coloridas e chamativas, enfileiradas na porta da geladeira.

Inocente cobiça capaz de se tornar selvageria nas condições de pressão e temperatura apropriadas. Basta os adultos esconderem ovos pela casa numa inocente brincadeira de caça ao tesouro; distração para os pequenos enquanto as cervejas são esvaziadas. Em sua ingenuidade, mal percebem a insensatez da estratégia: incitar a ambição de crianças ligeiramente alteradas por altas taxas de açúcar no sangue. É só a tia dizer - podem procurar - e todo mundo desaparece, deixando para trás apenas nuvenzinhas de poeira.

Pessoas são empurradas, vasos são quebrados, a gaveta das lingeries sexys da titia quarentona é violada. Tudo vale para ser o novo Barão do Cacau. Morder, bater, roubar, chorar, espionar. Sim, espionar. Pois há sempre os olhinhos que ficaram seguindo as pernas dos adultos na hora de esconder os doces. São as crianças que andam calmamente em meio à gritaria dantesca, se abaixando perto do ralo do banheiro e dizendo “Olha só, encontrei mais outro.” Os pais, claro, sempre se arrependem tarde demais: antes de estarem bêbados o bastante para ignorar os choros e brigas dos filhotes.

Ovos encontrados, acabada a festa, danos contabilizados. Hora do grande vencedor, senhor de bilhões de calorias achocolatadas, finalmente descansar alegre em cima de seu sucesso adocicado. Flawless victory. Tudo terminado... certo?

Pois apenas começou. Com a cabecinha no travesseiro, você se lembra de todas aquelas carinhas contorcidas pela inveja e  pelo começo da abstinência de açúcar. Vai pensar em como é fácil alguém ir, na ponta dos pés, abrir a geladeira; em como as embalagens podem ser desveladas por qualquer um capaz de dizer –Gugudada. Impossível dormir. Cada minuto será dedicado a conferir seu estoque; a pesar cada ovo a procura de 1 grama, 1 centigrama, 1 miligrama que seja, perdido. Sua riqueza tornada maldição. Irá jurar doar suas reservas aos seus colegas para logo em seguida abandonar essa ideia e comprar cadeados, só por precaução.

Então, um belo dia, você vai à escola. Antes, claro, deixa uma série de ordens com papai e mamãe e dá uma última olhada maternal ao seu tesouro em seu banco gelado. Com certa relutância - deve-se dizer - você fecha, lacra e finalmente parte apenas para retornar, horas depois, a uma geladeira vazia. Vazia não, pois ainda estarão lá as verduras; sempre há verduras. Danem-se as verduras! No chão, embalagens de bombons te guiam até a sala, onde vê dois pés enfiados em chinelas de borracha, que dão para duas pernas, que vão levar a sua mãe sentada no sofá, sorrindo para você com uma mancha brilhante marrom-bombom no canto da boca.

-Oi, filho, como foi a aula?

Atrás, o barulhinho de plástico sendo desembrulhado denuncia o seu papai que estende a mão para lhe oferecer metade do seu próprio ovo da Páscoa, conquistado a duras explorações das áreas mais sinistras da casa. Duro capitalismo selvagem, há sempre alguém acima de você.
Lição: acumule dinheiro, depois roube o chocolate do seu filho. Ou: Marx não gostava de chocolate.

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