sábado, 14 de maio de 2016

Era uma vez um Governo de que todos falavam mal...

Era uma vez um governo de que todos falavam mal.

Em suas viagens para Miami e Paris, culpavam o governo de assistencialismo aos pobres. Em suas hamburguerias, creperias, espetarias, cafeterias ou vários outros novos restaurantes gourmet, bradavam, “O governo não agita a economia”. Em seus festivais com inúmeros artistas que nunca vieram ao seu país, reclamavam, “Aqui não se apoia cultura como em outros países”. Em estádios de futebol moderno, em arquibancadas de luxo, vaiavam o dinheiro gasto em infraestrutura. Na praia, depois de votar em branco ou nem votar, resmungavam, “Tanto faz votar, dá tudo no mesmo”. Em cima dos livros de teoria da faculdade, repudiavam, “Nem sabem falar direito”. Em que funcionários públicos criticavam, “O governo é pouco eficiente, precisa fazer cortes”.


Era uma vez um governo de que todos falavam mal e um povo que passou a falar, “É... até que não era tão ruim assim”.

quinta-feira, 12 de maio de 2016

Crônicas Orientais II: Bushido do Amor

Dois samurais com espada, armadura imponente e carteira do sindicato dos samurais se preparam para um combate. O mundo congela e se aquieta, atento à tensão crescente. Os animais procuram o melhor lugar para assistir à luta, os galhos das árvores param de balançar e até as nuvens ficam constrangidas de seguir com sua eterna metamorfose e esperam. Por um tempo parece a maior competição de quem pisca primeiro da história, mas então o movimento.

A batida rápida dos pés no chão parece o vendaval de outono varrendo as folhas. Os rostos determinados. Os gritos ecoantes. O impacto.

Mas não é o som da espada cortando a carne que se ouve; é o das armaduras tinindo uma contra outra num imenso abraço. Os dois samurais envolviam-se como dois amigos separados por muito tempo. A voz deles, porém, era competitiva.

— Eu vou te abraçar feito um urso!

— Ah é! Quero ver!! Pois saiba que eu vou descansar minha cabeça no seu ombro e cheirar o seu cabelo!!!

— Então se prepara para a sacudida mortal do meu abraço com pulinhos! IIIAAAH!!! 
 
A batalha continuou sem tréguas, até que um dos samurais adormeceu gentilmente no abraço do outro — estava derrotado. Eles eram os samurais do abraço, homens honrados regidos por um código de afeto grudento e implacável, e essa época foi conhecida como A Grande Guerra dos Abraços, passada entre a Era Fuji e a Era Kodak. Mais tarde o sindicato dos samurais, interessado nos futuros direitos autorais de filmes históricos e no turismo, decidiu tornar a rotina dos samurais mais emocionante e assim abraços viraram espadas. Aquelas mesmas espadas que usavam geralmente para assar marshmallow na fogueira e fazer sanduíches.

Crônicas Orientais I: Kung Fu em Dívidas

O guerreiro Pae Cho Nei não gostou nada quando o terrível Puu Din, assassino profissional e confeiteiro nas horas vagas, matou o seu honorável mestre.  Na verdade, ele ergueu as mãos ao céu e jurou vingança junto ao cadáver.

— Entregarei em pessoa a alma de Puu Din aos demônios! E o bloquearei nas redes sociais!!

A partir daí começou um treinamento intensivo para se fortalecer e enfrentar o assassino. Nadou no rio contra a correnteza, meditou nu embaixo de cachoeiras, escalou as montanhas mais altas, meditou no topo dessas montanhas, encarou o rodízio de yakisoba nos podrão da esquina — é importante aumentar tanto a resistência interna quanto a externa — e meditou no banheiro durante nove meses. Enfim dominou as técnicas mais secretas do Kung Fu, após comprar o best-seller As Técnicas Mais Secretas do Kung Fu e Como Dominá-las.

Pae agora era um guerreiro superior ao próprio mestre. Podia finalmente começar a busca pelo assassino Puu Din. Logo nos primeiros meses de viagem sem descobrir qualquer pista de seu paradeiro, Pae Cho Nei percebeu algo importante. Que a China era grande pra caralho. E que cavalos comiam muito e eram caros. Pae estava na mesa de bar quando chegou a essa conclusão. Vendo sua preocupação, a balconista, filha do dono do bar, lhe perguntou o que acontecia.

— Estou numa jornada de vingança. Treinei três anos para enfrentar o assassino do meu mestre, mas nem sei por onde começar a procurá-lo.

— Que pena... mas quem sabe ficando um pouco aqui, a sorte não apareça. Talvez ela estivesse correndo atrás de você o tempo todo.

Pae Cho Nei deu uma olhada na balconista e não pode deixar de notar que ela era bonita, como uma ameixa brilhando ao luar numa noite de primavera — era um padrão de beleza diferente naquela época.  Pae aceitou o conselho e ficou mais um dia. O dia logo virou um mês, que viraram seis meses, que viraram uma gravidez, um casamento e depois outra gravidez e mais outra. Anos se passaram, o guerreiro agora era um velho, sua barriga havia crescido e também suas contas. As únicas vezes que se lembrava de Puu Din é quando batia em sua porta o cobrador de impostos. Então uma velha chama de vingança acendia em seus olhos cheios de catarata e ele gritava:

— Saia daqui, seu assassino! Quer provar a força dos meus punhos?

Nessa hora começava um kata de Kung Fu, que surtia nenhum efeito no cobrador de impostos além de um impassível cofiar do longo bigode. Bastava ele ameaçar um aumento de juros para fazer o velho guerreiro se desculpar e vasculhar o bolso atrás de trocados.

Enquanto via o cobrador de impostos se afastar com seu dinheiro, que deveria ser usado para pagar a dívida com o açougueiro, Pae Cho Nei se perguntava se não seria melhor ter estudado contabilidade em vez de ter treinado artes marciais.