Estava escuro.
Apenas uma luz, vinda de muito longe entrava na brecha das cortinas e cortava o quarto como uma lâmina. O garoto seguiu com as vistas o caminho da lâmina da janela até a parede oposta. Tentou dormir novamente. Sem sucesso, esperou os olhos se acostumarem com a escuridão, até o mundo se revelar para ele. Ali parado, lhe pareceu a eternidade. Quando conseguiu distinguir os contornos da televisão e do armário e dos demais objetos, levantou-se e seguiu devagar até a porta. Imaginou que ao passar pelo fio claro no meio do caminho seria dividido em dois. Com muito cuidado levantou o pé por cima como se fosse uma armadilha na selva. Depois, passou o outro por cima com igual cuidado. Pensou na própria besteira e sorriu.Abriu a porta.
No corredor, ouvia o grunhir dos roncos vindos dos quartos dos pais. Os dinossauros deviam provavelmente soar assim. Um outro som também estava presente. Parecia uma batida. Talvez um pingo d’água caindo da torneira. Verificou o banheiro. Estava tudo ok. Aproveitou para mijar, e em seguida rumou para a cozinha, atravessando a sala de estar. Lá também não havia sinal de desperdício de água. A terra estava a salvo. Pensou em como a mãe ficava desesperada e não parava de tagarelar sobre o aquecimento global. Se ela te pegasse escovando os dentes sem um copo, tinha um ataque e você se tornava o grande vilão. O garoto achava difícil algo tão grande como o mundo pudesse acabar de uma hora para outra. Pegou um copo dágua e decidiu esquecer a batida, embora ela parecesse querer lhe lembrar de algo muito importante e antigo. Foda-se estava mais preocupado se ganharia o vídeo game ou não no seu aniversário, se veria a garota que gostava na aula de amanhã, qualquer coisa menos aquele som.
Tomou gole de água, enquanto caminhava para a janela, na sala, que dava para a rua. Sentiu uma brisa muito leve e quente chegar ao seu rosto, tentando num esforço balançar os seus cabelos e desistindo no seu caminho. A noite estava nublada, sem estrelas ou lua, só um azul sujo num céu fosco. Sempre diziam que coisas horríveis aconteciam à noite. Assaltos, seqüestros, assassinatos, estupros, brigas e outras coisas da qual sempre falam os jornais. Mas para ele, do alto de seu quarto andar, nada parecia acontecer. Apenas árvores, ruas, prédios, a noite... e a batida ritmada que parecia estar mais alta.
Quando olhou mais para baixo, notou que um homem o observava. Ele estava no meio da rua, vindo sabe-se lá da onde e era pouco mais que um vulto. Sentiu-se gelar, mas o que aquele homem poderia fazer lá embaixo. Ficou quieto, tentou ser durão e indiferente. O homem só ficava ali parado, o rosto voltado para ele. Tinha algo de estranho, mas não conseguiu discernir logo o que era.
Primeiro achou que estava enxergando mal. O rosto do homem era vazio, como se a espera de alguém para modelá-lo, como um adão esquecido pelo criador. O garoto deu um passo para trás. A batida se tornava mais forte e água do copo se agitava.Um vento forte ergueu as cortinas, fez cair porta retratos e tremer os pêlos do seu corpo. Aquilo era muito diferente da brisa quente noturna. Algo passara voando lá fora. Algo grande.
E a batida ressoava agora nas paredes e no seu cérebro, retumbando uma mensagem esquecida. Lá fora das trevas, seres estranhos saíam, seres desmembrados e que pareciam estar no extremo oposto da cadeia evolutiva. Havia coisas que pareciam mistura de animais e que corriam alegres e magras e famintas. Subiam pelas paredes e entravam pelas janelas de apartamentos. Sombras gigantes se formaram contra o céu, montanhas que se mexiam e usavam a Terra como seu tambor. O garoto podia gritar, mas não adiantava. A mensagem estava clara. Os monstros haviam voltados. Os humanos estavam expulsos do paraíso.
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