sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Poeira no vento

As pessoas atravessavam a rua, seguindo as engrenagens do grande motor da cidade. Não olham para o lado, não se desviam do caminho, alguns para um sentido, uns para o outro. Alguns carros preocupados com a hora em que representarão o cuco saindo do relógio começam a buzinar.
Assim como os outros, Glauco estava no seu trilho e estava quase chegando ao outro lado da rua, quando, no sentido oposto, passou alguém familiar. Virou-se de chofre para trás, vendo as costas de uma mulher mais ou menos da sua idade, uns trinta e pouco, apesar dos trinta e poucos de Glauco parecerem quarenta e tantos.
Como que preso por um centro gravitacional, Glauco seguiu o cheiro de passado no ar, aumentando o passo em alguns saltos, pois o sinal de trânsito na sua infalível sincronia abrira. A engrenagem não podia atrasar.
Sinal verde. Motor de carro. Pés batendo no chão, nervosos e acelerados.
Glauco pára logo acima da sarjeta, bafejante. Era magro e raramente fazia algo além de ficar sentado na cadeira o dia inteiro; não era do tipo atlético. E suas olheiras e pela branca lhe davam a impressão de que esmaecia de alguma doença. Os olhos percorreram todas as direções do caminho à procura da moça. Encontrou-a. Andava apressada; os volumosos cabelos castanhos claros balançando sobre os ombros.
Com o fôlego ainda não recuperado, emparelhou com ela em busca de um vislumbre do rosto da memória. Estava quase conseguindo, mas a concentração o levou a não prestar atenção ao poste que aparentemente materializara na sua cara. Soltou um gritinho fino comprimido pelo baque que ajudou a situação toda ficar mais ridícula. Passou mão na cabeça que latejava e soltou alguns dos xingamentos que se permitia dizer: bosta! Que droga de poste!
O acidente acabou por chamar a atenção da mulher que ele seguia, estava agora de frente para ele.
-Você ta legal?- ela perguntou.
Ele respondeu que sim, abrindo os olhos e a vendo pela primeira vez. Porém, não era a primeira vez. A mulher, satisfeita com seu auxílio e com a resposta, logo se voltou para o seu trilho. O tempo não espera, porém....
-Espere! – pediu Glauco, que ainda tentava acertar os pensamentos.
-Sim? - com a mão entre os cabelos e o corpo de lado, preparada para fugir.
O homem se ajeitou um pouco, passando a mão pela camisa branca.
-Você não se lembra de mim?
-Desculpa. Não.
-A gente estudou na oitava série. Escola Santo Antônio. Eu sempre te oferecia bala no recreio, lembra? O Glauco.
Com uma careta, a mulher fingiu fazer esforço para lembrar. Mas sabia que nunca tinha visto esse cara na sua vida e estava começando a perder a paciência. Uma das suas mãos já começava a tatear a bolsa para verificar se estava o celular, caso se fizesse necessário o bom e velho truque. “Hey, desculpa, acabaram de me ligar. Precisam de mim para uma cirurgia de emergência. Vida ou morte! Tchauzinho.”
-Ah... sim. Glauco- ela falou, desviando o olhar – Ótimas balas.
Ele soltou um sorriso de contentamento. Uma pena que não estava com nenhuma bala no momento.
-Mas bem, hã... eu tô com pressa agora. Qualquer dia a gente combina de reunir a galera. A gente se fala!
Tão logo ela deu as costas, Glauco se manifestou, “ Você não se lembrou né?”
Ela soltou um suspiro e ele voltou a insistir numa dezena de pequenos feitos, como quando ele havia pego os cadernos dela, que caíram no chão da sala em 4 de outubro; do bicho de pelúcia que ele lhe deu no aniversário; da vez que ele sem querer vomitou na frente dela numa festa e muitas outras situações. Não obtendo êxito, decidiu trazer a sua lembrança mais querida e que em todos anos de sua vida nunca se amarelou, a lembrança da carta. Escrevera uma carta com todos seus sentimentos. Elegias, sonetos e declamações eram o que não faltava na carta. Entregou-a através de uma colega em comum e recebeu, em resposta, uma outra carta que dizia que nunca havia visto palavras tão bonitas antes, mas que lhe queria como amigo, um grande amigo. E que ela não sabia amar e - meio sem contexto - tinha muita coisa pra estudar.
Foi o que Glauco contou para ela.
-Hahaha! Cada coisa que a gente faz quando é adolescente, né? – brincou a mulher. –Que coisa, não lembro disso não.
-Não?! – o homem estava pálido, o que era uma proeza considerando a sua aparência descolorida.
-Não não. – falou descontraída - Vou dar uma olhada nas minhas coisas. É sempre bom dá umas boas risadas.
-É?!
Um aceno leve anunciou a saída da mulher e de sua memória. Todo aquele tempo aquilo ficara guardado nele e todo aquele tempo não significara nada. Quantas mais recordações preciosas não sofriam do mesmo mal? E tudo o que lhe restava eram as memórias e o trilho o qual seguia: acordar, almoçar, trabalhar, pagar divórcio de vez em quando, dormir mal. Lembrou-se dos tempos de criança, quando não tinha responsabilidade, quando as escolhas ainda estavam sendo feitas. Memórias falidas levadas pelo vento, o vento da rotina.
Naquele dia, não sentou a bunda na cadeira do trabalho, não perdeu tempo com as mesmas coisas do jornal e TV. Pegou a tal carta que estava dentro de uma caixa, levou-a para um bar qualquer, onde, acompanhado de cerveja intercaladas por doses de cachaças, anotou alguns palavrões que nunca falara e piadas mesquinhas por toda página de sentimentalismo. O vento havia passado e o ar estava quente e, no bar, fazia-se uma agradável bagunça.