Presépio não era o tipo de cara pelo qual você toma nota, ele simplesmente aparecia e desaparecia sem se você se importar muito; igual a uma caneta bic. Ele já foi demitido do seu trabalho como contador numa empresa de imóveis e continuou trabalhando lá por uns 3 meses. Nunca trabalhara tanto, aliás. As pessoas simplesmente deixavam os papéis em cima da mesa e achavam q eles desapareciam por mágica. No colégio, o inspetor do andar o trancou no banheiro, pois não reparara que havia alguém numa das cabines, mesmo que este alguém estivesse gemendo por causa de uma baita diarréia. A verdade era que, se alguém chegasse para Presépio e dissesse “Meu rapaz, lamento dizer mas você é um fantasma”, ele provavelmente daria de ombros e responderia algo do tipo “Isso explica muita coisa”.
Ele não se importava ou pelo menos já havia aceitado esse aspecto da sua vida. Não era um homem que esperava muito de si mesmo. Agora mesmo ele está num restaurante, esperando a meia hora que algum garçom percebesse os movimentos frenéticos que fazia com as mãos – igual ao das senhoras ao gritarem bingo - sem muito sucesso. Suspirou e decidiu descansar um pouco. No máximo, sairia do restaurante sem pagar a conta.
Voltou, então, sua atenção para uma mulher sentada numa mesa no fundo, além dos banheiros e ao lado de uma pilastra, isolada do resto do restaurante. Ela era gordinha, não muito, apenas o bastante para ter aquelas dobras na barriga, tinha um rosto redondo, olhos grandes que lhe davam uma aparência alegre e cabelos curtos na altura dos ombros. Presépio a achou bonita o bastante para que não tivesse coragem de chegar a dois metros de distância. É claro, pensou, não que fizesse diferença, poderia se vestir de Carmem Miranda e dançar de baixo do nariz dela que a moça nem repararia. Engraçado... Ele sempre gostou de Carmem Miranda; é contagiante. Todas aquelas frutas... Todavia, não era hora para devaneios, a mulher do fundo fazia uma careta estranha. Seus olhos estavam esbugalhados, suas mãos seguravam a mesa com força e ela parecia tentar tossir sem êxito.
Presépio, embora não fosse médico, sabia o que era um legítimo caso de “engasguidão” repentina. Assistira a isso no E.R.. Imaginou-se salvando a mulher e sendo aplaudido pelos clientes. Contudo, logo sua imaginação se transformou num episódio onde matava a coitada e era esquecido para sempre dentro de alguma prisão. O mais correto a fazer, concluiu, era olhar para uma parede e contar até 3. Tudo se resolveria. 1... 2... 3... Ok. Vamos olhar. É, agora ela está com as mãos segurando a garganta em desespero. Ótimo. Ele fez sinal para o garçom. Não adiantou. Deu um puxão nele. Ele o olhou com um sorriso, enquanto processava no cérebro da onde havia saído aquela criatura.
-Em que posso servi-lo, senhor?
-Tem uma mulher sufocando ali atrás.
-Uhum.- anotou o garçom em seu caderninho. Sorriu novamente- Já traremos o seu pedido.
Ele deu a volta na mesa de Presépio, foi até o balcão, deixou o seu bloco em um lugar qualquer e começou a rir quando viu a pegadinha na televisão. Presépio se esforçou para parecer incrédulo. Aquilo necessitava de uma atitude extrema. Tirou o pigarro da garganta e disse tímido, numa voz que variava de tom:
-Tem algum médico aqui?
Nenhuma resposta. Ele tentou.
Pegou o celular e discou emergência.
-Alô, tem uma mulher engasgan.
-Sua ligação logo será atendida. Por favor, aguarde alguns instantes.
Uma música monofônica começou a tocar. Era uma música de natal.
Ficou irritado. A sua habilidade de ser ignorado geralmente só o afetava, mas agora uma outra pessoa corria risco. E não era só uma pessoa, era uma mulher bonita pelo qual estava interessado. Não podia deixar de ligar para isso. Era um daqueles momentos da nossa vida que nos dão a oportunidade de mudar, de reescrever a nossa história. E Presépio sentiu que podia. Levantou-se da cadeira, empurrando o garçom que passava logo atrás e seguiu a passos firmes até a mesa da mulher; o rosto vermelho de vergonha. Algumas pessoas passaram a olhar para todos os lados, tentando entender o que estava acontecendo. Algumas começaram a pensar que seriam muito melhor tratadas em outros restaurantes onde provavelmente não teriam garçons bêbados caindo por aí. Nenhum deles é claro, não reparou no pequeno herói que passava por eles.
Presépio colocou os seus braços em volta do tórax da mulher, cuidando para não encostar nos seios. Concluiu, irônico, que iria demorar muito para ficar tão próximo de uma mulher novamente. Pessoas sempre dizem que o máximo que pode acontecer quando se flerta numa mulher é receber um não. Pois bem, nessa ocasião, alguém poderia morrer. E isso seria um fora um tanto traumatizante. Presépio soltou um suspiro, contou até três e fez pressão com as mãos sobre o abdome. A moça cuspiu um pedaço de algo que Presépio não definiu muito bem, talvez um osso de galinha, e respirou fundo.
-Essa foi por pouco dona. – disse ele, limpando o suor na testa. Havia conseguido! Salvara alguém! Seria notado por toda a história! Ou pelo menos teria uma placa com seu nome no restaurante... quem sabe um sanduíche feito com panetone chamado Presépio... – Sabe, não precisa agradecer. É meu dever civil salvar mulheres tão bonitas como a senhorita. E.
-Ufa, a sorte q eu consegui tossir a tempo. – interrompeu ela, sem dar muita bola.- Um milagre de Deus!
-Deus não! Eu! Euu! Deus tá muito ocupado rolando no seu sofá cósmico.
Presépio tentou dar chilique, sacudir a dona, mas essa não se contentava em parar de comer. Decidiu entregar os pontos. Talvez ele devesse ficar alegre por notar a própria capacidade ao salvar a mulher, ou talvez essa moral seja uma simples baboseira. O fato é que ninguém o viu quando pegou a garrafa de vinho tinto de uma mesa e nem quando saiu para a noite na rua, sem prestar as contas com o restaurante. E aquilo o deixou satisfeito.